Nestas últimas semanas, as nossas
vidas têm sido drasticamente alteradas pela urgência do combate à pandemia de
COVID-19 e pelo esforço de lidar com o que escapa ao nosso controlo. À alta
contagiosidade deste vírus, acrescem algumas agravantes próprias da vida
moderna: a rapidez de circulação de pessoas e bens, a alta diversificação e
especialização económica que nos mantém ligados e interdependentes, bem como a
elevada densidade populacional das áreas urbanas (num contacto constante em
quase constante anonimato). Para lidar com esta ameaça, autoridades nacionais e
locais têm privilegiado uma estratégia de distanciamento social e de isolamento
em casa, visando abrandar a propagação do vírus e, por conseguinte, o recurso
aos cuidados hospitalares. Como é natural em qualquer decisão política, existem
argumentos a favor e contra, e vão-se manifestando várias reservas e
inquietações em relação a esta estratégia. É razoável que exista preocupação nomeadamente
pelas consequências da paralisia simultânea de tantos sectores da economia, ou pelos
efeitos psicológicos e físicos gerados naqueles que, sozinhos, ficam confinados
à sua casa. São pontos muito pertinentes que exigem a nossa reflexão.
Porém, parecem existir outro tipo
de inquietações a acenar neste momento crítico. Publicado pelo conhecido site
“Open Democracy” (24 de Março), pode ler-se um texto intitulado “The coronavirus crisis shows it’s time to abolish the family” [A crise do coronavírus mostra que é tempo de
abolir a família] da autoria da feminista Sophie Lewis. O bom senso diz-nos que
é em ocasiões de vulnerabilidade que a importância da família se mostra óbvia.
É em tempos de crise que faz toda a diferença ter a companhia dos familiares, confiar
na divisão de responsabilidades, conhecer, apoiar e respeitar as vulnerabilidades
de cada um e fortalecer laços. Contudo, o bom senso parece não ter sido distribuído
por igual a todos. Isso explica que a maior preocupação de algumas pessoas
neste momento seja prosseguir com a missão cultural de abolir a família e que,
no seu entender, o lema “fique em casa” signifique para elas uma descida ao
inferno da opressão e das dependências familiares.
Segundo argumenta a especialista
em “heterosexualismo, anti-trabalho e abolição da família” (descrição pessoal na
sua conta de twitter) as mulheres, regra geral, não conseguem florescer no lar
capitalista e a quarentena que vivemos é o sonho de qualquer abusador. Citando
ainda uma sua colega feminista, acrescenta que: “as famílias são a panela de
pressão do capitalismo. Esta crise verá um aumento nas tarefas domésticas –
limpeza, culinária, cuidados familiares, como também de abuso infantil, abuso
sexual, violação por parceiro íntimo, tortura psicológica e muito mais (Madeline Lane-McKinley)”.
Não só fica aqui evidente a tentativa
de denegrir as relações conjugais e familiares por recurso à extrapolação de
casos lamentáveis de conflito e violência, como é explícita a rejeição da ordem
económica baseada na divisão de tarefas e na reciprocidade. A economia familiar
é vista como um desperdício de recursos ao serviço do capitalismo e como espaço
de opressão da individualidade e da identidade dos seus membros, forçados a
partilhar um espaço que será à partida desagradável. A autora queixa-se da romantização
das relações familiares como se os indivíduos devessem procurar a sua
realização humana lá fora, nos outros, em laços alargados longe da família.
Parece um caso claro de alguém que quer amar todos em geral e ninguém em
particular. A atitude do narcisista que quer exibir boas intenções, mas que não
assume riscos e responsabilidade de uma solidariedade privada entre quatro
paredes.
E não tenhamos dúvidas. Embora se
escudem em maus exemplos de violência familiar para tentar legitimar as suas
ideias, discursos como da autora desprezam a família pela sua natureza intrínseca.
E, longe de serem uma loucura rara, as dúvidas que lançam nas suas teorias
conseguem penetrar nas mentalidades e nas práticas correntes da nossa sociedade
(implícitas na descrição grotesca (ainda que inocente) do tempo passado em
família, na desconfiança permanente face ao outro, na ausência de hábitos
familiares em resultado da estatização das funções domésticas, etc). A autora
prossegue sem meias medidas:
“Mesmo quando a família nuclear
privada não representa uma ameaça física ou mental para ninguém – sem violência
conjugal, sem violação de menores, sem queixas – a família privada como modo de
reprodução social continua a ser, francamente, uma porcaria. Atribui géneros,
nacionaliza e faz-nos competir. Normaliza-nos para o trabalho produtivo. Isso
faz-nos acreditar que somos “indivíduos”. Minimiza os custos de capital e maximiza
o trabalho vital dos seres humanos (em biliões de caixas minúsculas, cada uma
delas equipada – absurdamente – com a sua própria cozinha, micro-creche e
lavandaria). Chantageia-nos a confundir as únicas fontes de amor e carinho que temos
com a extensão do que é possível.”
Quando diz “extensão do que é
possível”, tem em mente o sonho da comuna que aboliu todas as instituições tradicionais.
Por muito excêntrico e invulgar que possa parecer, o discurso desta autora é
uma simples reedição das velhas propostas dos socialistas utópicos do século XIX,
como Fourier, que ambicionavam abolir a família e o trabalho assalariado, por
meio da colectivização da propriedade, do trabalho e da educação das crianças e
da abolição dos laços afectivos familiares que deveria dar lugar à solidariedade
colectiva nas comunas e à sexualidade liberta da “moralidade burguesa”.
Chegamos a 2020 e, em plena crise
de saúde pública, existe quem afirme explicitamente: “Merecemos melhor do que a
família. E o tempo do coronavírus é um excelente momento para praticar a sua
abolição”. Tal frontalidade deve merecer uma resposta igualmente frontal e
corroborada pela realidade: Todos merecemos uma família. E o tempo do coronavírus
é um excelente momento para reafirmar as virtudes insubstituíveis desta instituição,
único refúgio quando tudo o resto pode falhar.