domingo, 5 de abril de 2020

Um travão à abolição da Família

Nestas últimas semanas, as nossas vidas têm sido drasticamente alteradas pela urgência do combate à pandemia de COVID-19 e pelo esforço de lidar com o que escapa ao nosso controlo. À alta contagiosidade deste vírus, acrescem algumas agravantes próprias da vida moderna: a rapidez de circulação de pessoas e bens, a alta diversificação e especialização económica que nos mantém ligados e interdependentes, bem como a elevada densidade populacional das áreas urbanas (num contacto constante em quase constante anonimato). Para lidar com esta ameaça, autoridades nacionais e locais têm privilegiado uma estratégia de distanciamento social e de isolamento em casa, visando abrandar a propagação do vírus e, por conseguinte, o recurso aos cuidados hospitalares. Como é natural em qualquer decisão política, existem argumentos a favor e contra, e vão-se manifestando várias reservas e inquietações em relação a esta estratégia. É razoável que exista preocupação nomeadamente pelas consequências da paralisia simultânea de tantos sectores da economia, ou pelos efeitos psicológicos e físicos gerados naqueles que, sozinhos, ficam confinados à sua casa. São pontos muito pertinentes que exigem a nossa reflexão. 

Porém, parecem existir outro tipo de inquietações a acenar neste momento crítico. Publicado pelo conhecido site “Open Democracy” (24 de Março), pode ler-se um texto intitulado “The coronavirus crisis shows it’s time to abolish the family” [A crise do coronavírus mostra que é tempo de abolir a família] da autoria da feminista Sophie Lewis. O bom senso diz-nos que é em ocasiões de vulnerabilidade que a importância da família se mostra óbvia. É em tempos de crise que faz toda a diferença ter a companhia dos familiares, confiar na divisão de responsabilidades, conhecer, apoiar e respeitar as vulnerabilidades de cada um e fortalecer laços. Contudo, o bom senso parece não ter sido distribuído por igual a todos. Isso explica que a maior preocupação de algumas pessoas neste momento seja prosseguir com a missão cultural de abolir a família e que, no seu entender, o lema “fique em casa” signifique para elas uma descida ao inferno da opressão e das dependências familiares. 

Segundo argumenta a especialista em “heterosexualismo, anti-trabalho e abolição da família” (descrição pessoal na sua conta de twitter) as mulheres, regra geral, não conseguem florescer no lar capitalista e a quarentena que vivemos é o sonho de qualquer abusador. Citando ainda uma sua colega feminista, acrescenta que: “as famílias são a panela de pressão do capitalismo. Esta crise verá um aumento nas tarefas domésticas – limpeza, culinária, cuidados familiares, como também de abuso infantil, abuso sexual, violação por parceiro íntimo, tortura psicológica e muito mais (Madeline Lane-McKinley)”.

Não só fica aqui evidente a tentativa de denegrir as relações conjugais e familiares por recurso à extrapolação de casos lamentáveis de conflito e violência, como é explícita a rejeição da ordem económica baseada na divisão de tarefas e na reciprocidade. A economia familiar é vista como um desperdício de recursos ao serviço do capitalismo e como espaço de opressão da individualidade e da identidade dos seus membros, forçados a partilhar um espaço que será à partida desagradável. A autora queixa-se da romantização das relações familiares como se os indivíduos devessem procurar a sua realização humana lá fora, nos outros, em laços alargados longe da família. Parece um caso claro de alguém que quer amar todos em geral e ninguém em particular. A atitude do narcisista que quer exibir boas intenções, mas que não assume riscos e responsabilidade de uma solidariedade privada entre quatro paredes. 

E não tenhamos dúvidas. Embora se escudem em maus exemplos de violência familiar para tentar legitimar as suas ideias, discursos como da autora desprezam a família pela sua natureza intrínseca. E, longe de serem uma loucura rara, as dúvidas que lançam nas suas teorias conseguem penetrar nas mentalidades e nas práticas correntes da nossa sociedade (implícitas na descrição grotesca (ainda que inocente) do tempo passado em família, na desconfiança permanente face ao outro, na ausência de hábitos familiares em resultado da estatização das funções domésticas, etc). A autora prossegue sem meias medidas:

“Mesmo quando a família nuclear privada não representa uma ameaça física ou mental para ninguém – sem violência conjugal, sem violação de menores, sem queixas – a família privada como modo de reprodução social continua a ser, francamente, uma porcaria. Atribui géneros, nacionaliza e faz-nos competir. Normaliza-nos para o trabalho produtivo. Isso faz-nos acreditar que somos “indivíduos”. Minimiza os custos de capital e maximiza o trabalho vital dos seres humanos (em biliões de caixas minúsculas, cada uma delas equipada – absurdamente – com a sua própria cozinha, micro-creche e lavandaria). Chantageia-nos a confundir as únicas fontes de amor e carinho que temos com a extensão do que é possível.” 

Quando diz “extensão do que é possível”, tem em mente o sonho da comuna que aboliu todas as instituições tradicionais. Por muito excêntrico e invulgar que possa parecer, o discurso desta autora é uma simples reedição das velhas propostas dos socialistas utópicos do século XIX, como Fourier, que ambicionavam abolir a família e o trabalho assalariado, por meio da colectivização da propriedade, do trabalho e da educação das crianças e da abolição dos laços afectivos familiares que deveria dar lugar à solidariedade colectiva nas comunas e à sexualidade liberta da “moralidade burguesa”. 

Chegamos a 2020 e, em plena crise de saúde pública, existe quem afirme explicitamente: “Merecemos melhor do que a família. E o tempo do coronavírus é um excelente momento para praticar a sua abolição”. Tal frontalidade deve merecer uma resposta igualmente frontal e corroborada pela realidade: Todos merecemos uma família. E o tempo do coronavírus é um excelente momento para reafirmar as virtudes insubstituíveis desta instituição, único refúgio quando tudo o resto pode falhar.


Pensar a família em tempos de pandemia e sempre

Artigo de Opinião publicado no Jornal Económico no dia 9 de Setembro de 2020 Das muitas novidades que atravessam o ano 2020, a menos óbvia, ...