domingo, 16 de fevereiro de 2020

Disfuncionalidades do Dia dos Namorados

Nesta semana que passou foi mais uma vez altura de comemorar o "Dia dos Namorados". Parece-me um bom pretexto para deixar algumas observações sobre certos aspectos que se têm vindo a manifestar, com maior ou menor novidade. São aspectos implícitos no quotidiano e nas mensagens culturais em nosso redor, mas que podemos identificar de forma mais explícita neste dia (ou em outras ocasiões similares).
Começando por aquilo que tem sido mais recorrente e que não nos surpreende como novidade. Poderia ser idealmente um momento de valorização da gratuitidade e generosidade de que idealmente se devem revestir as relações sociais mais básicas e fundamentais, as de comunhão na família. É essa a escola de humanização e de virtudes em qualquer sociedade equilibrada. Mas em vez de ser um momento de retribuir e lembrar o valor da cooperação, do sacrifício e do amor incondicional que não se manifesta em tal grau fora das "quatro paredes" do lar, sobressai frequentes vezes como uma efémera obrigação social desenquadrada de tudo, como uma obsessão por agraciar e apaparicar de forma invulgar, idealmente dispendiosa, o companheiro(a). Na maioria das vezes, em lugar de ser uma lembrança de todo o bem que resulta da "primeira comunidade humana", sobressai antes como um momento de tensão pessoal para pôr à prova, num dia, o que é eventualmente descurado ao longo do ano. E acresce aqui a preocupação de fazê-lo preferencialmente em público, face à pressão das redes sociais. Esta é uma combinação de factores muito apreciada para fins comerciais. 

Tudo isto é manifesto em outras ocasiões e é indício de uma certa disfuncionalidade dos nossos tempos. Uma disfuncionalidade acentuada pela perda de significados quanto à visão integral entre homem e mulher (e das suas diferenças), pela falta de objectivos comuns, pela postura autista de auto-satisfação acima de tudo, pela falta de comunicação honesta e por uma grande dose de irrealismo incutido nos nossos dias, em que existem expectativas de perfeição inconcretizável e pouco razoável a servirem de guia a toda a vida humana.

Mas para além de uma certa inaptidão social, para além da falta de visão integral das relações e das excessivas expectativas quanto ao percurso de vida, existe algo mais corrosivo e que se vislumbra com alguma novidade. A velha concepção socialista das relações familiares como esfera de amarras, opressão sexual, repressão e exploração regressa agora num revivalismo que explora o ressentimento como arma social e que devassa a vida privada com a justificativa de alegada protecção pública. Campanhas alusivas à violência no namoro incluem-se neste aspecto. Nos últimos dias fui bombardeada por notícias e por uma iniciativa em particular, "lenços dos ex-namorados", alusiva a relações abusivas. É-nos muitas vezes induzido o entendimento de que "há um longo caminho a percorrer" e sobretudo, que as mulheres estão mais susceptíveis do que nunca à selvajaria masculina. Mas a mensagem alternativa que devemos lançar, em desafio à interpretação conflitual de rivalidade que nos é imposta, é outra, e não coloca em causa a existência alarmante de relações abusivas (físicas e psicológicas, de homem contra mulher e vice-versa).

Uma sociedade que desaprendeu de confiar, de comunicar, de compreender as diferenças, de ser grata pela troca mútua, e que acreditou que poderia viver uma procura permanente por novas aventuras sem compromisso, descamba num extremo inédito. No extremo em que se espera o pior de todos, em que se passa à agressão e à invasão em vez de procurar o diálogo sincero, em que se omitem as imperfeições. Em suma, em que se controla de forma abusiva porque já ninguém compreende as vantagens de ter a vida naturalmente controlada pelo humilde reconhecimento de que precisamos uns dos outros e que a vida é tão curta que as melhores escolhas já testadas por muitas gerações são o compromisso e a fidelidade. 

Gone Girl (2014)

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