terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Casamento como via para a paternidade

"Por toda a sua eloquência acerca das virtudes e benefícios do casamento, os conservadores falharam em elucidar a razão de existência da instituição. O seu principal argumento, geralmente direccionado aos defensores do casamento entre pessoas do mesmo sexo, é o de que o propósito do casamento é a procriação.  Mas milhões de mães solteiras atestam que a procriação é perfeitamente possível sem casamento. Esta falaciosa banalidade é facilmente refutada pelos homossexuais, que apontam a condição infrutífera de muitos casamentos heterossexuais. O propósito do casamento não é a procriação, mas sim a paternidade: o casamento permite que as crianças tenham pai. O casamento transforma um homem, de simples doador de esperma em pai e, assim, cria autoridade paterna, permitindo que um homem exerça a autoridade sobre as crianças que, de outra forma, seria exercida somente pela mãe. As feministas percebem isso, quando renunciam o casamento como instituição do “patriarcado” e promovem a maternidade independente (single motherhood) e o divórcio como bens positivos em si mesmos. (…)

Thomas Hobbes atribui à paternidade no casamento um papel central no processo de mudança do caos para a civilização. Na natureza, argumenta Hobbes, “o domínio está na mãe”: “Pois na condição da mera natureza, onde não há leis matrimoniais, não se pode saber quem é o pai, a menos que seja declarado pela mãe. E, portanto, o direito de domínio sobre a criança depende da sua vontade e, consequentemente, pertence-lhe. Apenas na sociedade civilizada, onde “leis matrimoniais” operam, é que a autoridade sobre as crianças é partilhada com o pai. De facto, apesar de toda a tinta gasta para delinear o papel adequado do Estado no casamento, o papel dos incentivos fiscais, e assim por diante, é provavelmente justo dizer que o único papel verdadeiramente essencial do Estado no casamento (e isto mostra por que ele tem um papel importante, apesar de alguns libertários defenderem a sua total privatização) é garantir os direitos e autoridade parentais, e especialmente do pai. O nosso sistema legal há muito que insiste que o casamento, não o esperma, designa o pai. O padrão legal era a regra de Lord Mansfield, estipulando que se presume que uma criança nascida dentro do casamento é do marido, pois isso permite que um casamento sobreviva ao adultério da esposa. (Épocas anteriores talvez tivessem uma avaliação mais equilibrada das tendências femininas e masculinas em relação à promiscuidade).  
O papel do casamento na criação da paternidade também é visto na sua ausência. Hoje, o enfraquecimento do casamento produz lares geralmente sem pai, não sem mãe. (A ausência da mãe por vezes segue-se àquela, mas é a ausência do pai que começa o processo). À medida que os nascimentos fora do casamento explodem, os governos desenvolvem substitutos burocráticos para o casamento no seu esforço para “estabelecer a paternidade” para fins de recolha de pensões e (alega-se, geralmente de forma dissimulada) tentar a reaproximação dos pais aos seus filhos. (…)

Hoje não é possível formar um acordo vinculativo para criar uma família. Independentemente dos termos pelos quais é criado, os funcionários estatais podem e, a pedido de um único cônjuge, dissolverão automaticamente um casamento sobre a objecção do outro. E segue-se então a inevitável lógica autoritária que ninguém irá reconhecer ou confrontar: os funcionários estatais  assumirão o controlo total sobre toda a família – incluindo crianças e propriedades – e irão distribuí-las como quiserem, a quem quiserem."

[Tradução livre]

Stephen Baskerville, The New Politics of Sex: The Sexual Revolution, Civil Liberties and the Growth of Governmental Power, chapter II - Liberating sex: the politics of the family. Angelico Press, 2017.

2 comentários:

  1. Eu diria que a principal função do casamento é sobretudo saber-se (com alguma certeza) quem é o pai dos filhos; dito por outras palavras, o casamento largamente inverte o ónus da prova na determinação da paternidade: enquanto uma mulher solteira tem que provar que Fulano é o pai do seu filho, um homem casado é que tem que provar que não é o pai dos filhos das sua esposa. E é revelador que nas sociedades poliandricas, normalmente o que temos é uma mulher casada com vários irmãos, o que largamente diminui a relevância da determinação exata da paternidade (mesmo que os supostos filhos de Beltrano não seja filhos, são sobrinhos próximos, portanto não muda muito).

    Mas com o aperfeiçoamento das tecnologias de determinação da paternidade, mais uma razão para o casamento perder a sua razão de ser.

    [Um aparte acerca do argumento do que dizem que "o propósito do casamento é a procriação": em tempos escrevi um post sobre essa conversa com o título "Nunca terão tido gatos?"]

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  2. Muito obrigada pelo comentário, Miguel Madeira. Eu diria que, mais do que servir para saber quem é o pai (porque ao longo da história isso seria relativamente falível), o casamento providencia paternidade e confere estabilidade aos filhos e aos cônjuges. Como a citação que escolhi refere, pressupõe-se que os filhos dentro do casamento são do marido, aconteça o que acontecer. É firmado um compromisso duradouro e existe uma visão realista das inclinações humanas. O casamento tem mostrado a sua razão de ser, pela partilha de tarefas e entre-ajuda, por suprir necessidades relacionais, por criar condições propícias à procriação, por ser uma protecção patrimonial, etc. Se parece que perde a sua razão de ser, será certamente porque os desenvolvimentos jurídicos e culturais contribuíram para esbater as atrás referidas potencialidades.

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