Artigo de Opinião publicado no Jornal Económico no dia 9 de Setembro de 2020
Das muitas novidades que atravessam o ano 2020, a menos óbvia, mas decerto mais transversal e determinante para a maior parte da sociedade, terá sido o nosso regresso à família. Um regresso forçoso e repentino ao lar, depois de décadas de consolidação de hábitos no sentido inverso.
A actual organização económica, social e política tem-nos conduzido no sentido da designada “atomização” entre os membros da família, na medida em que a nossa época é permeada por obrigações laborais e sociais que tendem a absorver a energia e o tempo que tantas vezes são subtraídos às actividades familiares. Por sua vez, também a legislação é pensada mais para agentes isolados entre si do que para a família enquanto instituição social.
Se admitirmos que a organização então em vigor comporta tensões na gestão das dinâmicas familiares, identificamos algumas situações alarmantes que merecem reflexão.
Começando pelos mais vulneráveis, nunca será demais sublinhar a indigna condição a que os idosos têm sido lançados. Uma cultura personalista não pode conviver com a banalização do assistencialismo frio e burocratizado, nem pode admitir falta de transparência aos cuidadores. A mesma frieza é visível em regulamentações hospitalares que esquecem a importância insubstituível da família junto do doente.
A desadequada decisão de separar membros da família em momentos críticos, torna o recurso à assistência hospitalar numa experiência penosa. Pequenas correcções em matéria de comunicação e de práticas de prevenção pessoais podem viabilizar uma aproximação entre membros da família que a todos beneficiaria.
A respeito da população activa, a adaptação inédita passou pela introdução do teletrabalho num curto espaço de tempo. Os méritos e deméritos do repentino ajuste a este modelo de trabalho só poderão ser avaliados caso a caso, no meio da vasta multiplicidade de áreas profissionais que o vivenciaram. Ainda que não seja possível generalizar conclusões, é essencial reconhecer que estamos perante um terreno propício ao abuso – até involuntariamente auto-infligido, por falta de disciplina pessoal.
Para respeitar a dignidade do profissional e da sua vida privada, um recurso mais generalizado ao teletrabalho daqui em diante deve desenvolver-se a par de uma nova mentalidade de respeito pelo tempo do profissional e pela definição clara das horas dedicadas ao trabalho, protegendo a vida familiar, social e o lazer.
Em estreita relação com as dificuldades de gestão do teletrabalho, a instabilidade conjugal é outro flagelo que deixa vítimas pelo caminho neste regresso intensivo ao lar. A configuração das famílias modernas é marcada pelo aumento dos divórcios e pelo crescente número de famílias “monoparentais”, “reconstituídas” e até “unipessoais”.
Dos muitos factores que explicam estas tendências, o período que vivemos deixou notória a inaptidão dos casais para a convivência prolongada, quiçá fruto de laços baseados mais no sentimentalismo temporário e na satisfação psicológica do que no compromisso sólido em coordenação pela vida comum.
Por fim, mas não menos importante, é de lembrar a insustentável situação dos filhos que têm estado privados de vida escolar regular e disciplinada, comprometendo o ritmo de aprendizagem e as rotinas de convivência social. No mês de Setembro, as famílias deparam-se com o usual ambiente de incógnita próprio da “navegação à vista”, num sinal de pouco reconhecimento público da sua importância.
O momento que vivemos foi um desafio à recuperação das potencialidades da família como corpo relacional. Será que a família reaprendeu a agir como corpo interdependente que cuida das suas acções individuais para assegurar o bem-estar colectivo?
É esse carácter relacional que importa ter presente ao pensar nas políticas públicas com impacto na família, numa valorização enquanto organismo que potencia a estabilidade social, material e emocional, e como espaço de formação, desenvolvimento cognitivo e civilidade.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.