quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Pensar a família em tempos de pandemia e sempre

Artigo de Opinião publicado no Jornal Económico no dia 9 de Setembro de 2020


Das muitas novidades que atravessam o ano 2020, a menos óbvia, mas decerto mais transversal e determinante para a maior parte da sociedade, terá sido o nosso regresso à família. Um regresso forçoso e repentino ao lar, depois de décadas de consolidação de hábitos no sentido inverso.

A actual organização económica, social e política tem-nos conduzido no sentido da designada “atomização” entre os membros da família, na medida em que a nossa época é permeada por obrigações laborais e sociais que tendem a absorver a energia e o tempo que tantas vezes são subtraídos às actividades familiares. Por sua vez, também a legislação é pensada mais para agentes isolados entre si do que para a família enquanto instituição social.

Se admitirmos que a organização então em vigor comporta tensões na gestão das dinâmicas familiares, identificamos algumas situações alarmantes que merecem reflexão.

Começando pelos mais vulneráveis, nunca será demais sublinhar a indigna condição a que os idosos têm sido lançados. Uma cultura personalista não pode conviver com a banalização do assistencialismo frio e burocratizado, nem pode admitir falta de transparência aos cuidadores. A mesma frieza é visível em regulamentações hospitalares que esquecem a importância insubstituível da família junto do doente.

A desadequada decisão de separar membros da família em momentos críticos, torna o recurso à assistência hospitalar numa experiência penosa. Pequenas correcções em matéria de comunicação e de práticas de prevenção pessoais podem viabilizar uma aproximação entre membros da família que a todos beneficiaria.

A respeito da população activa, a adaptação inédita passou pela introdução do teletrabalho num curto espaço de tempo. Os méritos e deméritos do repentino ajuste a este modelo de trabalho só poderão ser avaliados caso a caso, no meio da vasta multiplicidade de áreas profissionais que o vivenciaram. Ainda que não seja possível generalizar conclusões, é essencial reconhecer que estamos perante um terreno propício ao abuso – até involuntariamente auto-infligido, por falta de disciplina pessoal.

Para respeitar a dignidade do profissional e da sua vida privada, um recurso mais generalizado ao teletrabalho daqui em diante deve desenvolver-se a par de uma nova mentalidade de respeito pelo tempo do profissional e pela definição clara das horas dedicadas ao trabalho, protegendo a vida familiar, social e o lazer.

Em estreita relação com as dificuldades de gestão do teletrabalho, a instabilidade conjugal é outro flagelo que deixa vítimas pelo caminho neste regresso intensivo ao lar.  A configuração das famílias modernas é marcada pelo aumento dos divórcios e pelo crescente número de famílias “monoparentais”, “reconstituídas” e até “unipessoais”.

Dos muitos factores que explicam estas tendências, o período que vivemos deixou notória a inaptidão dos casais para a convivência prolongada, quiçá fruto de laços baseados mais no sentimentalismo temporário e na satisfação psicológica do que no compromisso sólido em coordenação pela vida comum.

Por fim, mas não menos importante, é de lembrar a insustentável situação dos filhos que têm estado privados de vida escolar regular e disciplinada, comprometendo o ritmo de aprendizagem e as rotinas de convivência social. No mês de Setembro, as famílias deparam-se com o usual ambiente de incógnita próprio da “navegação à vista”, num sinal de pouco reconhecimento público da sua importância.

O momento que vivemos foi um desafio à recuperação das potencialidades da família como corpo relacional. Será que a família reaprendeu a agir como corpo interdependente que cuida das suas acções individuais para assegurar o bem-estar colectivo?

É esse carácter relacional que importa ter presente ao pensar nas políticas públicas com impacto na família, numa valorização enquanto organismo que potencia a estabilidade social, material e emocional, e como espaço de formação, desenvolvimento cognitivo e civilidade.


A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

domingo, 5 de abril de 2020

Um travão à abolição da Família

Nestas últimas semanas, as nossas vidas têm sido drasticamente alteradas pela urgência do combate à pandemia de COVID-19 e pelo esforço de lidar com o que escapa ao nosso controlo. À alta contagiosidade deste vírus, acrescem algumas agravantes próprias da vida moderna: a rapidez de circulação de pessoas e bens, a alta diversificação e especialização económica que nos mantém ligados e interdependentes, bem como a elevada densidade populacional das áreas urbanas (num contacto constante em quase constante anonimato). Para lidar com esta ameaça, autoridades nacionais e locais têm privilegiado uma estratégia de distanciamento social e de isolamento em casa, visando abrandar a propagação do vírus e, por conseguinte, o recurso aos cuidados hospitalares. Como é natural em qualquer decisão política, existem argumentos a favor e contra, e vão-se manifestando várias reservas e inquietações em relação a esta estratégia. É razoável que exista preocupação nomeadamente pelas consequências da paralisia simultânea de tantos sectores da economia, ou pelos efeitos psicológicos e físicos gerados naqueles que, sozinhos, ficam confinados à sua casa. São pontos muito pertinentes que exigem a nossa reflexão. 

Porém, parecem existir outro tipo de inquietações a acenar neste momento crítico. Publicado pelo conhecido site “Open Democracy” (24 de Março), pode ler-se um texto intitulado “The coronavirus crisis shows it’s time to abolish the family” [A crise do coronavírus mostra que é tempo de abolir a família] da autoria da feminista Sophie Lewis. O bom senso diz-nos que é em ocasiões de vulnerabilidade que a importância da família se mostra óbvia. É em tempos de crise que faz toda a diferença ter a companhia dos familiares, confiar na divisão de responsabilidades, conhecer, apoiar e respeitar as vulnerabilidades de cada um e fortalecer laços. Contudo, o bom senso parece não ter sido distribuído por igual a todos. Isso explica que a maior preocupação de algumas pessoas neste momento seja prosseguir com a missão cultural de abolir a família e que, no seu entender, o lema “fique em casa” signifique para elas uma descida ao inferno da opressão e das dependências familiares. 

Segundo argumenta a especialista em “heterosexualismo, anti-trabalho e abolição da família” (descrição pessoal na sua conta de twitter) as mulheres, regra geral, não conseguem florescer no lar capitalista e a quarentena que vivemos é o sonho de qualquer abusador. Citando ainda uma sua colega feminista, acrescenta que: “as famílias são a panela de pressão do capitalismo. Esta crise verá um aumento nas tarefas domésticas – limpeza, culinária, cuidados familiares, como também de abuso infantil, abuso sexual, violação por parceiro íntimo, tortura psicológica e muito mais (Madeline Lane-McKinley)”.

Não só fica aqui evidente a tentativa de denegrir as relações conjugais e familiares por recurso à extrapolação de casos lamentáveis de conflito e violência, como é explícita a rejeição da ordem económica baseada na divisão de tarefas e na reciprocidade. A economia familiar é vista como um desperdício de recursos ao serviço do capitalismo e como espaço de opressão da individualidade e da identidade dos seus membros, forçados a partilhar um espaço que será à partida desagradável. A autora queixa-se da romantização das relações familiares como se os indivíduos devessem procurar a sua realização humana lá fora, nos outros, em laços alargados longe da família. Parece um caso claro de alguém que quer amar todos em geral e ninguém em particular. A atitude do narcisista que quer exibir boas intenções, mas que não assume riscos e responsabilidade de uma solidariedade privada entre quatro paredes. 

E não tenhamos dúvidas. Embora se escudem em maus exemplos de violência familiar para tentar legitimar as suas ideias, discursos como da autora desprezam a família pela sua natureza intrínseca. E, longe de serem uma loucura rara, as dúvidas que lançam nas suas teorias conseguem penetrar nas mentalidades e nas práticas correntes da nossa sociedade (implícitas na descrição grotesca (ainda que inocente) do tempo passado em família, na desconfiança permanente face ao outro, na ausência de hábitos familiares em resultado da estatização das funções domésticas, etc). A autora prossegue sem meias medidas:

“Mesmo quando a família nuclear privada não representa uma ameaça física ou mental para ninguém – sem violência conjugal, sem violação de menores, sem queixas – a família privada como modo de reprodução social continua a ser, francamente, uma porcaria. Atribui géneros, nacionaliza e faz-nos competir. Normaliza-nos para o trabalho produtivo. Isso faz-nos acreditar que somos “indivíduos”. Minimiza os custos de capital e maximiza o trabalho vital dos seres humanos (em biliões de caixas minúsculas, cada uma delas equipada – absurdamente – com a sua própria cozinha, micro-creche e lavandaria). Chantageia-nos a confundir as únicas fontes de amor e carinho que temos com a extensão do que é possível.” 

Quando diz “extensão do que é possível”, tem em mente o sonho da comuna que aboliu todas as instituições tradicionais. Por muito excêntrico e invulgar que possa parecer, o discurso desta autora é uma simples reedição das velhas propostas dos socialistas utópicos do século XIX, como Fourier, que ambicionavam abolir a família e o trabalho assalariado, por meio da colectivização da propriedade, do trabalho e da educação das crianças e da abolição dos laços afectivos familiares que deveria dar lugar à solidariedade colectiva nas comunas e à sexualidade liberta da “moralidade burguesa”. 

Chegamos a 2020 e, em plena crise de saúde pública, existe quem afirme explicitamente: “Merecemos melhor do que a família. E o tempo do coronavírus é um excelente momento para praticar a sua abolição”. Tal frontalidade deve merecer uma resposta igualmente frontal e corroborada pela realidade: Todos merecemos uma família. E o tempo do coronavírus é um excelente momento para reafirmar as virtudes insubstituíveis desta instituição, único refúgio quando tudo o resto pode falhar.


quarta-feira, 11 de março de 2020

Algumas notas familistas sobre o COVID-19

O actual surto de COVID-19 é uma boa ocasião para tomarmos nota de alguns princípios básicos e intemporais que devemos ter bem presentes:

1. As maiores responsabilidades começam em casa, entre aqueles que nos são mais próximos, na adopção de bons comportamentos cívicos, de convivência social e de higiene e segurança.

2. Nem sempre devemos confiar na informação das autoridades públicas, se o nosso instinto nos deixa em alerta num sentido que não corresponde necessariamente à narrativa oficial. 

3. É preferível investir em todas as frentes numa acção preventiva imediata, do que actuar reactivamente à medida que os problemas se avolumam, ou por imitação daquilo que outros governos decidem ou não fazer. Governar para o longo prazo significa, no final, garantir um menor número de vítimas mortais e um menor prejuízo económico total para toda a sociedade. Ainda que possa sair caro no imediato, ficar em casa é a opção mais sensata, eficaz e digna. 

4. Os recursos são limitados e uma utilização irresponsável e imoderada dos meios públicos pode comprometer a capacidade futura de provisão a situações graves. Isto aplica-se também ao consumo doméstico que deve reger-se pela preocupação de poupança diária e de provisão atempada da despensa. 

5. Ter cuidados redobrados não é uma mera acção de auto-protecção individual. É, antes de mais, um comportamento altruísta que visa proteger as pessoas mais vulneráveis com quem nos relacionamos, na família, na vizinhança, no local de trabalho, nas escolas, e em todos os locais que fazem parte da nossa rotina. 

6. O envelhecimento da nossa população é um facto incontornável. E envelhecimento significa grande vulnerabilidade. Vulnerabilidade física ao vírus, vulnerabilidade por insuficiência de dispendiosos meios dos sistemas de saúde e vulnerabilidade emocional de uma população cada vez mais solitária e dependente. 

7. As fronteiras afinal são úteis. Se não velarmos por uma triagem e vigilância de proximidade, a propagação do vírus alcança proporções incontroláveis e será mais difícil identificar focos de contágio. Se não velarmos pelo próprio interesse dos nossos, ninguém o irá fazer. 



terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O feminismo que empobrece os pobres

No dia 24 de Fevereiro a revista TIME publicou um artigo intitulado "Feminism Claims to Represent All Women. So Why Does It Ignore So Many of Them?" [O Feminismo afirma representar todas as mulheres. Então, por que ignora tantas delas?] da autoria de Mikki Kendall. Em linhas gerais, o argumento da autora parte das constatação das condições de insegurança material que caracterizam a vida das mulheres pobres, inclusive e especialmente das mães solteiras, apelando a uma mudança mais ampla do acção política feminista que inclua as necessidades mais básicas das mulheres. Isto é, numa preocupação que vá além das meras inquietações da feminista rica e insatisfeita com a sua progressão na carreira. Significa isso, no entendimento da autora e activista, atender às adversidades que atacam desproporcionalmente a mulher, em termos de rendimento disponível, acesso a serviços, trabalho, habitação, etc.

Por um lado, não sei se involuntariamente, a autora tem o mérito de identificar um aspecto indesmentível da ideologia feminista: que esta é uma ideologia nascida entre, constituída por, e servindo as vidas e interesses de burguesa. E, naturalmente, reflectindo uma interpretação da realidade social diferente daquela que existe entre os hábitos, necessidades, preferências, carências e quadro de valores do grosso da sociedade. Assim, ainda que por diferentes meios, aquela interpretação elitista tenha conseguido vingar entretanto entre as várias camadas da sociedade, as suas características fulcrais continuam a manter uma desadequação funcional e de essência quando transpostas para a realidade das mulheres comuns, dos casais comuns, das famílias comuns. O feminismo esbarra no seu próprio irrealismo quando extravasa as paredes confortáveis do narcisismo burguês. Aliás, como costumo dizer, por trás de uma grande activista feminista, existem sempre várias mulheres não-feministas a velar pela normalidade das coisas. 

Diz então a autora, Mikki Kendall: "Com muita frequência, as poucas mulheres que chegam ao topo da estrutura patriarcal usaram o feminismo para chegar até onde queriam ir, mas não parecem ainda conscientes de que a força política associada ao feminismo pode ser usada para mais questões do que aquelas que importam para si mesmas. Eles escolheram sentar-se à mesa em vez de tentar construir novas mesas. O feminismo tem que servir os interesses de todos aqueles em quem se apoia para sustentá-lo, ou corre o risco de se tornar um movimento sem propósito para a maioria, e uma arma directa contra aqueles que afirma representar."

Por outro lado, o texto evidencia aquele vício moderno de conceber as instituições sociais, económicas, políticas e culturais como estruturas de opressão que viciam o jogo em desfavor de determinados grupos - neste caso, das mulheres. Devido a esta concepção que tanto se tem propagado, as relações sociais ficam cativas em lógicas de conflito e rivalidade, e a política, por sua vez, fica reduzida a estratégias de vitimização e de compensação individuais ou identitárias. Reclama-se segurança material para a mulher, entende-se a mulher isolada do seu ambiente social, familiar e laboral. Não existe um mínimo esforço por compreender padrões de escolhas, nomeadamente das mulheres de compreender onde entra o elemento de responsabilização. Interessa só apresentá-las como prova de desigualdade persistente, como prova de um ciclo vicioso de opressão, mas nunca como vítimas das condições geradas pelo feminismo e pelas normas sociais em vigor. 

Não existe a preocupação por favorecer condições favoráveis às relações mútuas, ao estreitamento de compromissos duradouros e à evolução tranquila das instituições sociais. Em vez disso, existe uma militância que isola indivíduos na sua depauperação particular e existe a esperança vã de que os serviços estatais são a salvaguarda e o refúgio mais apto, mais desejável, mais confiável. Ser atraído pelas fantasias feministas resulta a longo prazo na perpétua fuga à miséria e, nas condições actuais, na multiplicação de reivindicações de apoio estatal (quando este é um solo que já deu sinais de esgotamento há muito). A autora falha sobretudo em manter a fé num novo mundo em que o design político conseguirá livrar os indivíduos de todas as inseguranças e frustrações que aqui foram geradas. E como foram elas geradas afinal? Ora, repudiando o conhecimento prático, descartando os costumes e a tradição, hostilizando a natureza interdependente da sociedade e os seus respectivos benefícios visíveis e invisíveis. 



domingo, 16 de fevereiro de 2020

Disfuncionalidades do Dia dos Namorados

Nesta semana que passou foi mais uma vez altura de comemorar o "Dia dos Namorados". Parece-me um bom pretexto para deixar algumas observações sobre certos aspectos que se têm vindo a manifestar, com maior ou menor novidade. São aspectos implícitos no quotidiano e nas mensagens culturais em nosso redor, mas que podemos identificar de forma mais explícita neste dia (ou em outras ocasiões similares).
Começando por aquilo que tem sido mais recorrente e que não nos surpreende como novidade. Poderia ser idealmente um momento de valorização da gratuitidade e generosidade de que idealmente se devem revestir as relações sociais mais básicas e fundamentais, as de comunhão na família. É essa a escola de humanização e de virtudes em qualquer sociedade equilibrada. Mas em vez de ser um momento de retribuir e lembrar o valor da cooperação, do sacrifício e do amor incondicional que não se manifesta em tal grau fora das "quatro paredes" do lar, sobressai frequentes vezes como uma efémera obrigação social desenquadrada de tudo, como uma obsessão por agraciar e apaparicar de forma invulgar, idealmente dispendiosa, o companheiro(a). Na maioria das vezes, em lugar de ser uma lembrança de todo o bem que resulta da "primeira comunidade humana", sobressai antes como um momento de tensão pessoal para pôr à prova, num dia, o que é eventualmente descurado ao longo do ano. E acresce aqui a preocupação de fazê-lo preferencialmente em público, face à pressão das redes sociais. Esta é uma combinação de factores muito apreciada para fins comerciais. 

Tudo isto é manifesto em outras ocasiões e é indício de uma certa disfuncionalidade dos nossos tempos. Uma disfuncionalidade acentuada pela perda de significados quanto à visão integral entre homem e mulher (e das suas diferenças), pela falta de objectivos comuns, pela postura autista de auto-satisfação acima de tudo, pela falta de comunicação honesta e por uma grande dose de irrealismo incutido nos nossos dias, em que existem expectativas de perfeição inconcretizável e pouco razoável a servirem de guia a toda a vida humana.

Mas para além de uma certa inaptidão social, para além da falta de visão integral das relações e das excessivas expectativas quanto ao percurso de vida, existe algo mais corrosivo e que se vislumbra com alguma novidade. A velha concepção socialista das relações familiares como esfera de amarras, opressão sexual, repressão e exploração regressa agora num revivalismo que explora o ressentimento como arma social e que devassa a vida privada com a justificativa de alegada protecção pública. Campanhas alusivas à violência no namoro incluem-se neste aspecto. Nos últimos dias fui bombardeada por notícias e por uma iniciativa em particular, "lenços dos ex-namorados", alusiva a relações abusivas. É-nos muitas vezes induzido o entendimento de que "há um longo caminho a percorrer" e sobretudo, que as mulheres estão mais susceptíveis do que nunca à selvajaria masculina. Mas a mensagem alternativa que devemos lançar, em desafio à interpretação conflitual de rivalidade que nos é imposta, é outra, e não coloca em causa a existência alarmante de relações abusivas (físicas e psicológicas, de homem contra mulher e vice-versa).

Uma sociedade que desaprendeu de confiar, de comunicar, de compreender as diferenças, de ser grata pela troca mútua, e que acreditou que poderia viver uma procura permanente por novas aventuras sem compromisso, descamba num extremo inédito. No extremo em que se espera o pior de todos, em que se passa à agressão e à invasão em vez de procurar o diálogo sincero, em que se omitem as imperfeições. Em suma, em que se controla de forma abusiva porque já ninguém compreende as vantagens de ter a vida naturalmente controlada pelo humilde reconhecimento de que precisamos uns dos outros e que a vida é tão curta que as melhores escolhas já testadas por muitas gerações são o compromisso e a fidelidade. 

Gone Girl (2014)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Casamento como via para a paternidade

"Por toda a sua eloquência acerca das virtudes e benefícios do casamento, os conservadores falharam em elucidar a razão de existência da instituição. O seu principal argumento, geralmente direccionado aos defensores do casamento entre pessoas do mesmo sexo, é o de que o propósito do casamento é a procriação.  Mas milhões de mães solteiras atestam que a procriação é perfeitamente possível sem casamento. Esta falaciosa banalidade é facilmente refutada pelos homossexuais, que apontam a condição infrutífera de muitos casamentos heterossexuais. O propósito do casamento não é a procriação, mas sim a paternidade: o casamento permite que as crianças tenham pai. O casamento transforma um homem, de simples doador de esperma em pai e, assim, cria autoridade paterna, permitindo que um homem exerça a autoridade sobre as crianças que, de outra forma, seria exercida somente pela mãe. As feministas percebem isso, quando renunciam o casamento como instituição do “patriarcado” e promovem a maternidade independente (single motherhood) e o divórcio como bens positivos em si mesmos. (…)

Thomas Hobbes atribui à paternidade no casamento um papel central no processo de mudança do caos para a civilização. Na natureza, argumenta Hobbes, “o domínio está na mãe”: “Pois na condição da mera natureza, onde não há leis matrimoniais, não se pode saber quem é o pai, a menos que seja declarado pela mãe. E, portanto, o direito de domínio sobre a criança depende da sua vontade e, consequentemente, pertence-lhe. Apenas na sociedade civilizada, onde “leis matrimoniais” operam, é que a autoridade sobre as crianças é partilhada com o pai. De facto, apesar de toda a tinta gasta para delinear o papel adequado do Estado no casamento, o papel dos incentivos fiscais, e assim por diante, é provavelmente justo dizer que o único papel verdadeiramente essencial do Estado no casamento (e isto mostra por que ele tem um papel importante, apesar de alguns libertários defenderem a sua total privatização) é garantir os direitos e autoridade parentais, e especialmente do pai. O nosso sistema legal há muito que insiste que o casamento, não o esperma, designa o pai. O padrão legal era a regra de Lord Mansfield, estipulando que se presume que uma criança nascida dentro do casamento é do marido, pois isso permite que um casamento sobreviva ao adultério da esposa. (Épocas anteriores talvez tivessem uma avaliação mais equilibrada das tendências femininas e masculinas em relação à promiscuidade).  
O papel do casamento na criação da paternidade também é visto na sua ausência. Hoje, o enfraquecimento do casamento produz lares geralmente sem pai, não sem mãe. (A ausência da mãe por vezes segue-se àquela, mas é a ausência do pai que começa o processo). À medida que os nascimentos fora do casamento explodem, os governos desenvolvem substitutos burocráticos para o casamento no seu esforço para “estabelecer a paternidade” para fins de recolha de pensões e (alega-se, geralmente de forma dissimulada) tentar a reaproximação dos pais aos seus filhos. (…)

Hoje não é possível formar um acordo vinculativo para criar uma família. Independentemente dos termos pelos quais é criado, os funcionários estatais podem e, a pedido de um único cônjuge, dissolverão automaticamente um casamento sobre a objecção do outro. E segue-se então a inevitável lógica autoritária que ninguém irá reconhecer ou confrontar: os funcionários estatais  assumirão o controlo total sobre toda a família – incluindo crianças e propriedades – e irão distribuí-las como quiserem, a quem quiserem."

[Tradução livre]

Stephen Baskerville, The New Politics of Sex: The Sexual Revolution, Civil Liberties and the Growth of Governmental Power, chapter II - Liberating sex: the politics of the family. Angelico Press, 2017.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

A recuperação do familismo

O que entendemos por familismo? Que relevância tem para os nossos dias? Que motivos justificam a defesa de uma renovada valorização do familismo nas sociedades mais desenvolvidas, quando todas as tendências que aí têm lugar apontam para a inevitável instauração de uma ordem pós-familista?

O termo familismo, quando aplicado ao âmbito da organização social e política, corresponde a uma concepção da ordem social que dá prioridade à família e às suas dinâmicas relacionais. Reconhece a família como célula fundamental da sociedade e distingue a especificidade das relações de cooperação e altruísmo que se desenvolvem entre os membros da família. No domínio das políticas públicas, o familismo tem sido um conceito fundamental nas últimas décadas para classificar modelos de providência social que assumem a vocação provedora da família, atribuindo um papel central às potencialidades desta como instância primordial de socialização, subsistência e de prestação de cuidados. Tais potencialidades só são possíveis na base da interdependência de funções, da reciprocidade entre os elementos da família e da continuidade das responsabilidades e compromissos. 

É notório que este entendimento da família tem vindo a desaparecer do discurso político, cedendo o lugar às prioridades da autonomia individual e, quando muito, lá vão aparecendo alusões à importância da liberdade de escolha das famílias: liberdade de escolher o percurso de estudo, liberdade de conciliar trabalho e família, liberdade de escolher os serviços para a família, liberdade de escolher quando ter filhos... para todos estes efeitos, a família agora cinge-se a ser somente um espaço de consumo e de afecto, em que os indivíduos vão brevemente coexistindo num turbilhão frenético entre as responsabilidades laborais e as obrigações estatais. 

As nossas sociedades terceirizadas e pós-modernas deparam-se com inadiáveis desafios demográficos, económicos e culturais que não podem ser ignorados. Este é um ponto assente para todos. As inúmeras tentativas para reverter a tendência de declínio da natalidade em muitos países ocidentais, e até asiáticos, é prova disso mesmo. Mas quais serão verdadeiramente as causas que travam a renovação da população neste momento? Estarão a reflectir uma preferência real e firme dos indivíduos, ou serão o resultado de um conjunto de novas incapacidades e insuficiências modernas? Insuficiência de tempo para responder a todas as responsabilidades. Insuficiência de confiança para investir em compromissos. Incapacidade de gerir o longo prazo por insuficiente confiança. Incapacidade de entrega pessoal aos seus por quase tudo já ter sido tomado pelo Estado ou por terceiros. Incapacidade de distinguir que existe uma vida social de pequena escala, primeira e essencial, onde se inclui a vida familiar, entre outras relações de proximidade, e que só depois vem a vida pública e impessoal. Quando se perdem a identidade, as atribuições e a confiança naquela primeira vida social, todas as soluções para o problema demográfico ficam reduzidas a paliativos. 

Não será possível minimizar os custos suportados pelas famílias modernas - por muito generosos que sejam os abonos e os serviços de apoio à infância - sem que exista uma nova consciência colectiva da família como um valor mais elevado na hierarquia social. É necessário superar os velhos mitos que apresentaram a família como espaço de repressão e de exploração. É igualmente necessário refutar a visão conflitual e concorrencial entre homens e mulheres, como se a conjugalidade fosse um jogo de soma nula. Apesar das inúmeras transformações históricas que a atravessaram esta instituição, na sua essência a família resiste como principal refúgio e reunião de gerações, como organismo que não exige acção racional nem trocas proporcionais. Independentemente de quem tenha sonhado com outro tipo de ordem social, livre de ligações familiares, livre de constrangimentos morais, livre de prestação de deveres, as provas dadas pela experiência abonam em favor do familismo. É razão suficiente para inaugurar este blogue e compreender em que medida, em linha com Aristóteles, o todo é superior à simples soma das partes. 

Pensar a família em tempos de pandemia e sempre

Artigo de Opinião publicado no Jornal Económico no dia 9 de Setembro de 2020 Das muitas novidades que atravessam o ano 2020, a menos óbvia, ...