O que entendemos por familismo? Que relevância tem para os nossos dias? Que motivos justificam a defesa de uma renovada valorização do familismo nas sociedades mais desenvolvidas, quando todas as tendências que aí têm lugar apontam para a inevitável instauração de uma ordem pós-familista?
O termo familismo, quando aplicado ao âmbito da organização social e política, corresponde a uma concepção da ordem social que dá prioridade à família e às suas dinâmicas relacionais. Reconhece a família como célula fundamental da sociedade e distingue a especificidade das relações de cooperação e altruísmo que se desenvolvem entre os membros da família. No domínio das políticas públicas, o familismo tem sido um conceito fundamental nas últimas décadas para classificar modelos de providência social que assumem a vocação provedora da família, atribuindo um papel central às potencialidades desta como instância primordial de socialização, subsistência e de prestação de cuidados. Tais potencialidades só são possíveis na base da interdependência de funções, da reciprocidade entre os elementos da família e da continuidade das responsabilidades e compromissos.
É notório que este entendimento da família tem vindo a desaparecer do discurso político, cedendo o lugar às prioridades da autonomia individual e, quando muito, lá vão aparecendo alusões à importância da liberdade de escolha das famílias: liberdade de escolher o percurso de estudo, liberdade de conciliar trabalho e família, liberdade de escolher os serviços para a família, liberdade de escolher quando ter filhos... para todos estes efeitos, a família agora cinge-se a ser somente um espaço de consumo e de afecto, em que os indivíduos vão brevemente coexistindo num turbilhão frenético entre as responsabilidades laborais e as obrigações estatais.
As nossas sociedades terceirizadas e pós-modernas deparam-se com inadiáveis desafios demográficos, económicos e culturais que não podem ser ignorados. Este é um ponto assente para todos. As inúmeras tentativas para reverter a tendência de declínio da natalidade em muitos países ocidentais, e até asiáticos, é prova disso mesmo. Mas quais serão verdadeiramente as causas que travam a renovação da população neste momento? Estarão a reflectir uma preferência real e firme dos indivíduos, ou serão o resultado de um conjunto de novas incapacidades e insuficiências modernas? Insuficiência de tempo para responder a todas as responsabilidades. Insuficiência de confiança para investir em compromissos. Incapacidade de gerir o longo prazo por insuficiente confiança. Incapacidade de entrega pessoal aos seus por quase tudo já ter sido tomado pelo Estado ou por terceiros. Incapacidade de distinguir que existe uma vida social de pequena escala, primeira e essencial, onde se inclui a vida familiar, entre outras relações de proximidade, e que só depois vem a vida pública e impessoal. Quando se perdem a identidade, as atribuições e a confiança naquela primeira vida social, todas as soluções para o problema demográfico ficam reduzidas a paliativos.
Não será possível minimizar os custos suportados pelas famílias modernas - por muito generosos que sejam os abonos e os serviços de apoio à infância - sem que exista uma nova consciência colectiva da família como um valor mais elevado na hierarquia social. É necessário superar os velhos mitos que apresentaram a família como espaço de repressão e de exploração. É igualmente necessário refutar a visão conflitual e concorrencial entre homens e mulheres, como se a conjugalidade fosse um jogo de soma nula. Apesar das inúmeras transformações históricas que a atravessaram esta instituição, na sua essência a família resiste como principal refúgio e reunião de gerações, como organismo que não exige acção racional nem trocas proporcionais. Independentemente de quem tenha sonhado com outro tipo de ordem social, livre de ligações familiares, livre de constrangimentos morais, livre de prestação de deveres, as provas dadas pela experiência abonam em favor do familismo. É razão suficiente para inaugurar este blogue e compreender em que medida, em linha com Aristóteles, o todo é superior à simples soma das partes.
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